7 de dezembro de 2007

Terceiro Capítulo

Eu queria, eu precisava de expressão! Ora essa, um balcão, podar minha mente em troca de dinheiro? Não, eu precisava ir além e após aquele episódio fui pra casa de novo. Pensar e pesar um pouco as coisas, definir prioridades, o que era importante pra mim. Dinheiro? Não. Mas vivo em um mundo porco. Eu precisava de dinheiro.

Mas o que eu poderia fazer para conquistar aquele maldito pedaço de papel? Dando voltas para casa e vi o que talvez fosse minha solução. O mesmo piano velho, sujo e desafinado de sempre e meus discos de jazz e meu toca discos. Sentei, sentei-me ao piano aquele dia e lá fiquei, apertando teclas, dedilhando notas, tocando, compondo escrevendo.

Era poesia sonora, caótica, era minha raiva expressada em som, tensão e suor. Mas era vago, eu queria dar mais vida à todo aquele caos. E me ocorreu: PEDRO! E SUAS PERCUSSÔES! Já era tarde da noite, corri pelos corredores e escadarias do inferno, dito prédio, procurando pelo apartamento de Pedro e o encontrei saindo:

“ – Ta saindo?” disse.
Ao que ele respondeu:
“ – Agora.”
E eu retruquei:
“ – Não está mais!”

O trouxe ao meu apartamento, e tocamos noite adentro, mostrei minhas composições, anotadas a garranchos em papel sujo, rasgado e amassado. Ele pirou, inspirou-se, subiu ao seu apartamento, buscou números de telefones e meio dúzia de badulaques percussivos e experimentamos. Atabaques, bongôs, tumbadoras, agogôs, djembés, timbalitos e todo tipo de parafernalha. Éramos uma dupla de músicos mentalmente perturbados e vi ali minha salvação, será?

8 de novembro de 2007

Segundo Capítulo

O banheiro me sufocava, o apartamento me sufocava, me assombrava. E a atitude foi tomada. Aproveitei que estava ali no banheiro e tomei um banho, mas infelizmente a alma não foi lavada, como eu desejava. Vesti a ultima das roupas que me deixava com a aparência próxima a de alguém digno e sai tentando buscar algo pra fazer. Bati perna, bati cabeça, não tinha um currículo ou um histórico de trabalhos anteriores. Resultado: Comecei a trabalhar em uma padaria, da qual fui demitido no mesmo dia.

Aconteceu que eu havia acabado de ingressar naquele maldito sub-emprego, estava estressado, nervoso, quando, por ironia -ou maldade - do destino entrou pela porta daquela espelunca um rosto familiar. Era uma das velhas do prédio onde eu vivia, que chegou ironizando:

- Estão empregando marginais aqui agora? Como podem?

Foi o suficiente, o estopim que minha cabeça estava esperando para explodir, para entrar em colapso. Meu corpo e minha mente que já extrapolavam os limites do stress não suportaram aquele desaforo, esbravejei, xinguei como eu nunca havia xingado ninguém, todos os nomes e xingamentos possíveis e imagináveis eu gritei com fúria. Transbordava do meu corpo toda a raiva acumulada dos tempos anteriores, toda a dor, toda a insatisfação. A satisfação é a morte de todo o desejo e desejo é a mola motora de todo ser humano, ao menos deveria ser. Eu tinha o desejo pelos meus vícios, desejava álcool, desejava música, desejava satisfação, desejava sossego, desejava sorriso. No entanto...

Demissão, um resultado óbvio para o ocorrido, mas também pudera, eu não duraria muito naquela droga de emprego, eu queria mais, eu queria expressão e não omissão atrás de um balcão!

28 de outubro de 2007

Capítulo Primeiro

E despertei, despertei um despertar brusco, repentino, causado pelo vômito que me subia à garganta. Pelo vômito e pelos raios de sol que me queimavam o rosto. Havia dormido por dois dias inteiros e despertado naquela manhã. Corri com meu vômito para o banheiro e lá despejei as conseqüências da minha extravagância. Vomitei não só álcool, vomitei dor, fúria, auto-ódio. Vomitei um pouco de mim. Ali mesmo, sentado naquele chão imundo de cor verde-água, me pus a pensar um pouco em mim. Minha cabeça entrou em turbilhão, definitivamente era uma sensação nova, fazia tempo que eu não pensava em mim, isso se um dia eu houvera, de fato, pensado. Havia permitido que meus vícios tomassem conta da maior parte da minha vida e eu estava ali, sentado naquele chão imundo de banheiro. Tudo o que eu condenava eu havia tomado pra mim, havia me tornado o monstro que eu havia prometido, a mim mesmo, manter distante de mim.

Mas só pensar não bastava, e já que eu havia pensado devia fazer alguma coisa, a sensação de abafar daquele apartamento só fazia essa necessidade ser mais urgente. Também me dei conta de que o resto miserável dos mantimentos que ainda existia logo acabaria. Dinheiro? Umas poucas notas remanescentes que estavam amassadas dentro da carteira rasgada e espalhadas pelos bolsos da roupa jogada no chão. E era apenas aquilo, nada mais. Se eu quisesse voltar a comer com fins de me manter vivo eu deveria conseguir outra forma de obter dinheiro. Eu deveria conseguir um trabalho, essa era a realidade.

Como? Eu era apenas mais um idiota com o segundo grau completo e de intelecto mediano, um homem de poucas habilidades. Talvez alguma habilidade na conversa, na lábia, e nada muito além disso. Eu precisava me sustentar. Precisava de dinheiro. Precisava trabalhar. Enfim, eu precisava de alguma coisa.

18 de outubro de 2007

ANÚNCIO - INÍCIO DA SEGUNDA FASE

Após um hiato de três meses, o folhetim voltará a ser publicado dando início a segunda fase da saga de Ricardo. E tudo se inicia após uma reviravolta na vida de Ricardo, a perda do direito à pensão a qual ele tivera direito e a sua tão desejada noite de extravagância.

O Primeiro capítulo será postado no último final de semana de outubro.

21 de junho de 2007

Capítulo 11

Fomos até meu decadente apartamento, onde poderíamos ter um pouco mais de sossego, privacidade e o que mais fosse necessário a um casal de jovens afoitos. Eu por extravasar. Ela por um sabe-la-o-que qualquer que, honestamente, não me interessava tanto.

Entre detalhes, que prefiro ocultar nesse diário de minhas memórias, e trivialidades tivemos uma noite longa. Uma noite longa e intensa, alimentávamos um da luxuria do outro.
Porém quando acordei, já tarde, ela não estava mais lá. Havia me abandonado ali, nu, desprotegido. Eu estava à mercê da minha própria sorte. Levantei dali em busca de alguma pista, de um algo qualquer que provasse a presença dela ali nas horas que haviam passado...E nada. Meu piano continuava coberto, meus discos não haviam sido remexidos, minhas roupas estavam no exato lugar onde as deixei no princípio de nossa noite.

O que teriam sido minhas últimas horas? Teriam sido nada? Ela esteve lá comigo, eu sei, eu senti, eu tenho as marcas no meu corpo, eu tenho arranhões nas costas, no pescoço. Mas como ela teria feito pra sair sem deixar vestígios?

Não havia nada lá. Havia uma janela aberta, janela essa que deixamos aberta. Sentei diante dela. O balançar das cortinas embalou meu sono novamente, não havia nada lá para fazer.

10 de junho de 2007

Capítulo 10 - Extravagância

E a encontrei. Em meio de tanta gente, depois daquela estranha conversa com aquela menina que, sabe-se lá a razão, parecia preocupada com meu estado, a encontrei. Chego por trás, ao pé do ouvido pergunto-a:

- Estás fugindo de mim?

- E eu deveria?

- Talvez.

- Mas por que raios eu deveria? Mostra-me!

Foi o estopim para minha explosão, para a extravagância tão desejada desde muito tempo atrás. A agarrei, a coloquei entre meus braços e beijei-a com volúpia, com fome, com certa violência até. Minhas mãos a exploravam com propriedade, pareciam já conhecer aquele corpo de outras noites. E outros dias. E outras noites de outros dias.

Optamos por sair daquele lugar, cheio de gente estranha, alheia e desnecessária.

28 de maio de 2007

Capítulo 09

Algo me dizia para eu responder a pergunta de Carine com alguma mentira...

“ – Meu nome? ... Meu nome é Ricardo.” Merda! Escapou-me a verdade. O que tentei corrigir com um...”Hahaha. Mas gostei de ‘barbudinho’”.


Carine exercia uma atração estranhamente forte sobre mim. Eu precisava dela, precisava possuir aquele corpo, talvez por efeito do álcool, talvez uma necessidade carnal causada pela intensidade das ultimas horas que tinha tido até aquele momento.


Dei uma olhada rápida em volta e Pedro já se divertia com uma mulher que vestia um estranho verde, era uma bonita ruiva, mas não era possível ver muita coisa. Quando voltei minha visão para onde estava antes, Carine não estava mais lá. Aquela morena de curvas insinuantes que me atraia de forma perturbadora havia desaparecido, não conseguia esconder a aflição.

Comecei a andar para lá e para cá neuroticamente, fui de novo ao bar, pedi uma dose de uísque e virei de uma vez. Nesse momento se aproximou uma menina. Pele clara, cabelos cacheados, e um ar que beirava o mistério e a timidez, no estado de perturbação e pileque que eu estava não era possível definir ao certo como era ela.

“- Ei, cara, vai devagar. Ta tudo bem com você?”, ela disse.

“– E você realmente se importa?”.

“– calma, calma. Olha... meu nome é Flávia, como você se chama?”.
Em meio a soluços informei, pela segunda vez, meu nome a uma mulher. “Ricardo”, disse eu. Ela me veio dizer sobre exageros de álcool, ou algo parecido, eu não prestava muita atenção no que ela dizia. Olhava para ela. E olhava em volta. Eu queria ouvir o que aquela moça aparentemente gentil dizia, mas meus olhos olhavam por todo o bar, inquietos, velozes. Até que avistaram Carine ao longe.

“– desculpa ter de te interromper... Flávia, né? Mas tenho de ir correndo, desculpa”.

Corri até o encontro de Carine...

17 de maio de 2007

Capítulo 08

“ – Corre!”

E corremos, corremos muito, corremos como nunca havíamos corrido antes na vida. A subversão do que poderia, por uns, ser chamado de arte e que é tido como vandalismo pela maioria, pura moralidade. Quem é moral? O que é moral?!

Pedro parecia conhecer os caminhos obscuros daquela cidade como a palma da própria mão, todas as ruas, vielas e caminhos esdrúxulos que existem e não vemos à luz do dia. Ou preferíamos não ver.

Corríamos, fomos perseguidos durante muito tempo. Mas Pedro me conduzia por lugares por onde aquela viatura não podia chegar. Aquela lata velha caía aos pedaços, mas parecia resistir bravamente. Tinha gana de gente e assustava como gente.

Calor, tensão, suor, entramos em um beco que saia em uma ruela. Dois polícias nos perseguiam. A essas alturas já havíamos largado nossas latas e luvas, tínhamos nossas mochilas e trajávamos luto a fim de camuflar-nos no breu da noite.

“ – Aqui! Rápido.”

Após esse comando de meu amigo, o segui. Nos escondemos atrás de caixotes velhos de um aviário falido e abandonado. Agora a tensão reinava, a respiração era pesada, ofegante. As mãos, as pernas, os joelhos, até mesmo os olhos tremiam. O simples ruído da respiração podia despertar a atenção de nossos possíveis algozes. Comunicávamos por olhares e gestos com a cabeça.

Ouvíamos os passos e os “Splash” dos coturnos nas poças d’água.
"Eles passaram direto".

No mesmo instante corremos para outro lugar distante dali. Pedro sugeriu que comemorássemos, tomássemos alguma coisa em algum lugar. Segui com minha saga rumando a extravagância, precisava extravasar. A raiva ainda me consumia.

Começamos a caminhar pela cidade baixa. Ruelas sujas, bêbados, putas... A cidade pulsava como coração e espírito jovem, e, talvez por isso, inconseqüente. Encontramos uma casa, um bar, botequim, ou sei lá o que era aquilo. Havia uma banda tocando, músicos ruins que eram parte de um cenário medíocre como todo o resto da cidade. Entramos na tal casa. E começamos a beber. A bebida era ruim, forte e barata, a receita perfeita.

A tal banda tocava umas músicas porcas, sujas. Era rock, embora mal-feito, era rápido e cru. Foi aí que decidimos ir à frente do tablado, onde pessoas se aglomeravam em busca de não-se-sabe-bem-o-que.
Com o fim da apresentação, a aglomeração se desfaz. Eu e Pedro estávamos cansados, abatidos, suados.

Viro-me pro lado e avisto uma morena. Cabelos curtos, roupas justas...

“- Oi, morena. Já devem ter te elogiado hoje, não serei chato, mas vou perguntar seu nome. Qual é a sua graça”?

“ – Olá barbudinho! Eu me chamo Carine! E você? Qual seu nome?”

12 de maio de 2007

Capítulo 07 - Inferno

Tomado por um espírito de fúria fui voltando a passos largos, voltando sem saber bem para onde, mas voltando. Chutava cada caixa, saco ou cachorro que via pela frente, chutava garrafas, latas, atravessei ruas, parei o trânsito, gritei com a policia, xinguei mães alheias pela rua.

Caminhava em direção ao apartamento, fazia os percursos mais longos e complicados, dava voltas e mais voltas procurando por respostas que sabia que não encontraria em nenhum boteco pé-sujo qualquer de esquina do centro de uma metrópole como essa. Cidade vadia, cidade imunda!

Cheguei ao prédio já era noite, já era bêbado, já era frio, já era escuro. Subi as escadarias e subitamente me encontrei com Pedro descendo as mesmas escadas, ele vestia preto. Vestia preto e carregava uma mochila. Eu também vestia preto, mas, oposto ao proposto, carregava nada. Nada além de ódio, fúria, suor e álcool.

Lembro que naquele encontro Pedro se assustou com meu estado e perguntou o que tinha acontecido, ele me ofereceu a tal extravagância, abriu a mochila e me mostrou o que havia.

Latas de tinta em spray, garrafas e mais garrafas de bebida alcoólica, capuzes e toucas ninja.

“– Tem a manha?”

Não tinha nada a perder, literalmente.

Perguntei algo como

“ – Qual vai ser?”

e Pedro me disse: “ – Sei lá, vamos fazer uns rabiscos por aí.”

Eu já vestia luto, já usava tênis confortáveis, era o que me bastava.

Paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes, paredes e muros. Casas, prédios... A cidade inteira era uma grande tela, uma grande folha de papel preste a ser destruída por revolta, simples revolta. Ódio puro concentrado.

Sangue quente corria pelas veias, pelos vasos. Fervilhando, borbulhante. Quando instantaneamente um som. Eu conhecia aquele som, eu já havia ouvido enquanto observava a vida, seguro, por trás da minha janela.
O som se tornava cada vez mais alto, e presente.

“ – Puta que pariu! A polícia, cara!

...

4 de maio de 2007

capítulo 06

Ah que época aquela! Época dos absurdos, das comédias trágicas vividas na pele, na carne. Devaneios eram o que regiam minha mente, eram tempos de viver ao Deus dará. Foram meses e mais meses de uma estranha felicidade regada a prazeres sensoriais e flagelação, mas tal situação não duraria muito mais de alguns meses.

Durou até um dia, uma tarde pra ser mais exato. Era uma quarta-feira nublada, essas coisas sempre acontecem às quartas-feiras, principalmente nas nubladas. Fui ao banco para apanhar a tal da pensão, ou o que me sobrava dos descontos que ela sofria, desconto disso, desconto daquilo, coisas de Brasil. Era inicio de mês e fui recebido por uma imensa fila de pessoas, aquele era o mostruário do fracasso e eu ali no meio daquilo tudo.

Após algumas horas de espera foi chegada a minha vez, respondi prontamente o “boa tarde” automático da operadora de caixa, de forma amistosa.

“- Boa tarde, vim para retirada de pensão”.

Exibi os documentos necessários, tudo de acordo com o protocolo que seguia todo mês.

“- Não consta seu benefício, diz aqui que foi cortado”.

Ao que me lembro ter respondido

“- Como é? Que tipo de merda você pensa estar dizendo?”.

E fui obrigado a, passivo, ouvir algo como:

“- Se acalme senhor, não temos culpa nem controle sobre essas coisas. Aqui não entrou nada para o senhor, o senhor gostaria de estar ligando para o órgão que oferecia a pensão?”

OFERECIA? Fui deixado sozinho nessa desgraça de cidade, minha família morreu trabalhando! E vem alguém, que nunca me viu antes, dizer que me ofereciam um beneficio? Que tipo de pedinte achavam que eu fosse?

O suor me desceu, choque, caos, decepção, stress! A realidade parecia mais lunática ainda. Engoli seco e saí daquele lugar que me já parecia me sufocar.


E agora?

A extravagância que antes parecia apenas um remédio temporário, agora se fazia necessariamente real. Mais que um desejo, era palpável, pulsava por cada veia que percorria meu corpo, tomou conta do meu sangue, tomou conta de mim.

Ódio.

29 de abril de 2007

Capítulo 05

Havia vida e havia marasmo. Todo o entusiasmo causado por aquele evento surpreendente havia passado, agora conhecia Pedro, o jovem percussionista e provável novo amigo, mas tudo havia voltado ao normal naquele pardieiro deforme. Os velhos voltaram a ser falastrões e incoerentes. Os corredores ainda fediam a mofo. Tédio, nojo, desgosto e a monotonia voltaram a imperar.


As vidas das baratas e dos ratos daquele lugar pareciam ser mais excitantes que a minha, tudo sempre acontecendo muito rápido, seguir somente instintos, correr sem muito rumo, procurando apenas por algo que possa cheirar a podre, fugir de perigos ameaçadores e morrer cedo. Pensando uma vez mais, e melhor, não tínhamos vidas assim tão diferentes, exceto pela parte da “fuga de perigos ameaçadores”, uma vez que não corria perigo algum, exceto de ser sufocado pela rotina.


Eu ainda era o mesmo ser autodepreciativo e um tanto arrogante, sufocado por uma vida mesquinha presa a uma sociedade ordinária. E como se não bastasse tudo isso, era alguém que acabara de descobrir ser fraco para o álcool, minha válvula-de-escape favorita. Ou talvez a única. De certo, ainda havia a música, meus discos de jazz, Piazzolla, Sadè, blues, vísceras postas para fora de forma harmônica e angustiada. Porém não era o bastante, por vezes ainda tinha a necessidade da extravagância!

Mas ela viria em forma de que?

Buscando essa resposta sentei e escrevi aquele dia, escrevi, toquei, compus, toquei, escrevi, toquei e toquei ainda mais. Devo ter composto umas 5 ou 6 músicas diferentes. Elas eram tensas, densas, extensas, sanguinolentas, angustiantes. E aquele dia foi mais um dia que passou como as formigas que eu vejo da janela, apressado e não notável;

20 de abril de 2007

Capítulo 04

Tapas, água, e um “ - Acorda aí, ô pé-de-cana” depois... Desperto, meio grogue, meio tonto, a visão meio embaçada, uma dor na barriga, que parecia rígida. Na garganta um gosto de vômito e uma sensação de que havia engolido uma escova de cabelos. Olheiras, abatido, suado, sujo, molhado, despenteado, fui acordado por Pedro.

Talvez ele tenha evitado uma morte prematura, eu poderia morrer sufocado com um possível vomito, me restava agradecer.

– Cara, sei que minha imagem não inspira muita consideração ao que digo, mas, nem sei como te agradecer, eu estaria na merda se não fosse por você.

Ao que ele respondeu

- Relaxa! Foi um golpe de sorte. Meu estado também não era dos mais exemplares, mas eu sempre te vejo ir e vir por aqui. O vi lá naquelas e como vivo aqui também, nada me custava.

- Vive aqui?

- Isso. Moro com minha família lá em cima... Bom, pelo menos com o que restou dela.


Eu já havia visto aquele sujeito circulando pelo prédio antes, mas não esperava que ele também vivesse naquele maldito covil, havia um pouco de vida lá afinal.
Durante essa conversa ele anda pelo apartamento como quem busca alguma coisa incansavelmente. Parece que achou.

- Hei! São discos de Jazz! E um Piano!

Respondi, com a cabeça ainda doendo:

- É. Discos velhos e um piano sujo e desafinado.

- Velharia? Você tem é uns bons clássicos aqui, rapaz... Ah é! Seu nome. Qual é?

- Me chamo Ricardo. Você é Pedro, né? Já me falaram de você antes, mas achei que aquele velho maluco reclamava até de visitantes.

- Você também não gosta do Paulo? Aquele velho é retardado, só pode ser isso. Reclama de barulho em horário permitido, o filho da puta ficava me censurando quando eu estudava percussão lá no apê.

Daí para adiante, não foi preciso muito mais. Ele era um músico jovem, com revoltas parecidas as minhas, ao menos as do prédio. Em pouco tempo já estávamos em meio a uma conversa enorme sobre jazz, música e de como tudo é tão descartável.

Pedro era conhecedor da boa musica, gostava de Jazz, Rock, conhecia o maracatu e admirava ritmos como a salsa, um percussionista de verdade.

Enfim havia vida naquele prédio.

12 de abril de 2007

Capítulo 03

Sexta-feira treze, um dia estranho para se acordar de péssimo humor, sobretudo para alguém que não carregava crenças ou superstições, mas foi o que aconteceu naquele dia cinza. Decidi então que não daria para trás e que o levaria até o fim, o arrastaria feito correntes pesadas a serem arrastadas eternamente por um prisioneiro. Isso! Um prisioneiro, era assim que me sentia, um prisioneiro dentro do meu próprio corpo. Dentro de mim.

Comecei aquele dia pretendendo me libertar, decidi que castigaria meu corpo na tentativa de expulsar minha alma ou o que mais existisse lá, se era que algo existia mesmo. Meu primeiro impulso foi de ingerir toda e qualquer coisa que pudesse alterar meu estado físico e mental para o resto daquele dia e de cara encontrei largada na cozinha uma garrafa de café, frio, amargo e provavelmente “dormido” de três dias ou coisa assim. Tomei tudo, virei aquilo feito água. Meus sensos de equilíbrio e direção foram totalmente alterados por toda aquela cafeína.

O cair daquela tarde gris misturada ao meu desequilíbrio passageiro me fez querer mais daquela degradação. Tocando meus discos de jazz ao fundo, adicionei àquela onda bebidas quentes, transparentes, amareladas, claras, turvas, de todo jeito, o que interessava era o choque. Com o fim do crepúsculo, pus-me dentro de uma muda de roupas escolhida aleatoriamente e fui à rua meio sem destino, então buscando o desatino comecei a perambular pelos bares da orla.

Mais bebidas, bebidas de todos os cheiros nomes e jeitos, cachaça, vodka, uísque, absinto, fogo-paulista... Atirei-me àquele zoológico de sexo barato e baderna. Nomes e rostos se embaralham em minha memória, Paula, Raquel, Marcela, eram tantos os nomes, tantos corpos, tantos os cheiros e sabores que não consegui fixar nada, nada, ninguém, nada levei comigo! Nada!

Exceto por tontura, estômago embrulhando, queimação por dentro, dormência dos membros, dor de cabeça, falta de autocomando, tudo girava. Luzes, cores, formas e sons se embaralhavam, o equilíbrio se foi e...

Caí, desfaleci.

5 de abril de 2007

Capítulo 02

Conheci muita gente naquela época, gente de todos as cores, tamanhos, tipos e espécies. Conversei com os bacanas e com a ralé, com gente vazia e gente com muita história pra contar, essa geralmente bem chata. Ouvi histórias, vi a escória, a glória e a quase-derrota de um povo medíocre, mas que acaba sempre vencendo as coisas pelo cansaço. Eu era parte e me mantinha à parte daquilo tudo, aquela gente aparentemente normal, conservadores de um ideal de moral que pra mim já havia caído por terra, assim como minha família, aquela gente pseudomoderna que não suportava ouvir algo diferente de eco e que a única coisa que pôde fazer a meu favor foi ter tido a vida encerrada abruptamente naquele acidente, fazendo assim com que minha vida pudesse, de fato, se iniciar nesse “apê” velho e desprezado e com isso que chamam de pensão.

Meu tempo definitivamente não era regido pelo relógio, exercia a plenitude do meu direito de ir e vir. Era, em essência, o que muitos dos moradores daquele prédio imundo gostariam de ser, mas por despeito não eram e não admitia tal desejo. Seu Paulo era o comandante daquele chiqueiro, um projeto de síndico frustrado e falido. Quase todo dia eu ouvia a mesma ladainha reclamatória sobre minhas entradas e saídas do prédio todo o tempo, toda madrugada. E aquele prédio era cheio dessa gente. Havia Sônia, uma viúva amarga que vivia com sua irmã solteirona. Havia muitos “Paulos” e “Sônias” lá e por toda a cidade.

Aquela gente doida me inspirava às vezes, havia dias em que eu chegava e me sentava ao piano, dali não saia tão cedo, ficava dedilhando coisas pra lá e pra cá, descarregando raiva, nojo e o que mais viesse, até que me satisfizesse, mesmo que em nada resultasse. Era sempre eu, o piano, alguns papeis e uma garrafa, fosse cachaça, vodka, vinho ou café, importava só que fosse um combustível qualquer que me desse alguma força para pôr pra fora o que viesse. No final disso tudo restava eu, largado no chão vencido, enfim, esgotamento físico.

Lembro que nunca lembrava com clareza das coisas, o que eu considerava por memória eram os papéis rabiscados com anotações que eu encontrava pelo chão, em cima do piano e por onde mais houvesse espaço para haver algo. Onde não havia espaço para haver algo, me havia.

28 de março de 2007

Capítulo 01 - O Início

Ainda me lembro claramente daqueles tempos, que vivia sem me preocupar com muitas coisas, em que vivia numa cidade qualquer à beira mar, passava os dias a esperar a noite chegar e saía para ver a vida passar. Sentava-me em um banco e punha-me a observar como a gente ia se flagelando aos pouquinhos a cada dia que passava. Violência, álcool, sexo barato... Observava quase como se estivesse em um zoológico e vez por outra me permitia participar de toda aquela baderna organizada e que acontecia com rigor quase que religioso.

Todo santo-dia, ou mesmo todo dia-pagão, estavam todos lá, distribuídos por entre bares e botecos, mesas e grupelhos. A harmonia desorganizada daquele burburinho era entrecortada por vozes que subiam e desciam, por gargalhadas escandalosas e por gritos de “traz mais uma” e clichês semelhantes. Aliás, os clichês reinavam por toda parte, via-se o jovem engravatado levando uma caneca de chope em uma das mãos na busca de um “happy hour” perdido, peões com cara-de-acabado, prostitutas cheirando a frescor de água-de-colônia. Todos os estereótipos da vida urbana compartilhavam o mesmo espaço, a mesma luz da lua misturada ao amarelar dos postes.

Levava uma vida deveras desregrada naqueles tempos, só tinha compromisso com o descompromisso e empurrava as coisas com a barriga. Não que eu tivesse uma vida de burguês ou me portasse feito um almofadinha, mas o acaso nunca houvera me surpreendido e, de uma forma ou de outra, as coisas vinham sempre dando certo. Entre minhas posses não materiais eu tinha a total ciência de meus defeitos e minhas virtudes, ambos politicamente corretos e assim meio errados, entre eles, tinha a tal da sinceridade como ponto de interseção, a verdade que é por vezes confortante e, por outras, cortante. No mais, eu tinha um velho e desafinado piano, uma vitrola, a vida noturna e um teto sobre minha cabeça, eu verdadeiramente não precisava de mais nada. Não mesmo...

20 de março de 2007

Sinopse

Memórias urbanas é mais uma dessas histórias comuns que se passa numa cidade qualquer à beira-mar, sobre um cara comum com uma vida parecida a de muitos outros caras comuns.

Ricardo, um jovem, que vivia da pensão ofertada pelo seguro de vida de sua, já falecida, família “pseudomoderna” morava em um apartamento próximo a costa litorânea, não tinha muito, mas havia satisfação mesmo assim, pois, oposto a maioria, Ricardo não precisava de muito para viver, os prazeres dos vícios e da música o completavam.

Mas era um misto de satisfação e certo incômodo, Ricardo não era bem visto no prédio de apartamentos onde habitava. Era tido como vagabundo, porra-louca, doidivanas. Cada um dos velhos rabugentos, como ele dizia, tinha seu adjetivo favorito quando tinha de se referir ao rapaz.

Mas até que um dia, por uma dessas ironias do destino, as coisas começaram a mudar drasticamente. O pouco que, até então, o satisfazia já não mais chegara até ele. Ricardo agora se via obrigado a batalhar pelo sustento de seus vícios, ou tentar.

Um romance-drama-suspense urbano, ou qualquer outra coisa. Uma história regada a jazz, bossa, vinhos, vícios, defeitos, verdades, mentiras, virtudes, confiança e ironia. Uma história comum.