5 de abril de 2007

Capítulo 02

Conheci muita gente naquela época, gente de todos as cores, tamanhos, tipos e espécies. Conversei com os bacanas e com a ralé, com gente vazia e gente com muita história pra contar, essa geralmente bem chata. Ouvi histórias, vi a escória, a glória e a quase-derrota de um povo medíocre, mas que acaba sempre vencendo as coisas pelo cansaço. Eu era parte e me mantinha à parte daquilo tudo, aquela gente aparentemente normal, conservadores de um ideal de moral que pra mim já havia caído por terra, assim como minha família, aquela gente pseudomoderna que não suportava ouvir algo diferente de eco e que a única coisa que pôde fazer a meu favor foi ter tido a vida encerrada abruptamente naquele acidente, fazendo assim com que minha vida pudesse, de fato, se iniciar nesse “apê” velho e desprezado e com isso que chamam de pensão.

Meu tempo definitivamente não era regido pelo relógio, exercia a plenitude do meu direito de ir e vir. Era, em essência, o que muitos dos moradores daquele prédio imundo gostariam de ser, mas por despeito não eram e não admitia tal desejo. Seu Paulo era o comandante daquele chiqueiro, um projeto de síndico frustrado e falido. Quase todo dia eu ouvia a mesma ladainha reclamatória sobre minhas entradas e saídas do prédio todo o tempo, toda madrugada. E aquele prédio era cheio dessa gente. Havia Sônia, uma viúva amarga que vivia com sua irmã solteirona. Havia muitos “Paulos” e “Sônias” lá e por toda a cidade.

Aquela gente doida me inspirava às vezes, havia dias em que eu chegava e me sentava ao piano, dali não saia tão cedo, ficava dedilhando coisas pra lá e pra cá, descarregando raiva, nojo e o que mais viesse, até que me satisfizesse, mesmo que em nada resultasse. Era sempre eu, o piano, alguns papeis e uma garrafa, fosse cachaça, vodka, vinho ou café, importava só que fosse um combustível qualquer que me desse alguma força para pôr pra fora o que viesse. No final disso tudo restava eu, largado no chão vencido, enfim, esgotamento físico.

Lembro que nunca lembrava com clareza das coisas, o que eu considerava por memória eram os papéis rabiscados com anotações que eu encontrava pelo chão, em cima do piano e por onde mais houvesse espaço para haver algo. Onde não havia espaço para haver algo, me havia.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muita ansiedade para ler a continuação!
Cada vez melhor.

Beijo ;*

Coisas que ninguém pode saber disse...

O Layout é lindo. O texto é lindo. A idéia é linda. Só o autor que é feio, rs.