29 de abril de 2007

Capítulo 05

Havia vida e havia marasmo. Todo o entusiasmo causado por aquele evento surpreendente havia passado, agora conhecia Pedro, o jovem percussionista e provável novo amigo, mas tudo havia voltado ao normal naquele pardieiro deforme. Os velhos voltaram a ser falastrões e incoerentes. Os corredores ainda fediam a mofo. Tédio, nojo, desgosto e a monotonia voltaram a imperar.


As vidas das baratas e dos ratos daquele lugar pareciam ser mais excitantes que a minha, tudo sempre acontecendo muito rápido, seguir somente instintos, correr sem muito rumo, procurando apenas por algo que possa cheirar a podre, fugir de perigos ameaçadores e morrer cedo. Pensando uma vez mais, e melhor, não tínhamos vidas assim tão diferentes, exceto pela parte da “fuga de perigos ameaçadores”, uma vez que não corria perigo algum, exceto de ser sufocado pela rotina.


Eu ainda era o mesmo ser autodepreciativo e um tanto arrogante, sufocado por uma vida mesquinha presa a uma sociedade ordinária. E como se não bastasse tudo isso, era alguém que acabara de descobrir ser fraco para o álcool, minha válvula-de-escape favorita. Ou talvez a única. De certo, ainda havia a música, meus discos de jazz, Piazzolla, Sadè, blues, vísceras postas para fora de forma harmônica e angustiada. Porém não era o bastante, por vezes ainda tinha a necessidade da extravagância!

Mas ela viria em forma de que?

Buscando essa resposta sentei e escrevi aquele dia, escrevi, toquei, compus, toquei, escrevi, toquei e toquei ainda mais. Devo ter composto umas 5 ou 6 músicas diferentes. Elas eram tensas, densas, extensas, sanguinolentas, angustiantes. E aquele dia foi mais um dia que passou como as formigas que eu vejo da janela, apressado e não notável;

20 de abril de 2007

Capítulo 04

Tapas, água, e um “ - Acorda aí, ô pé-de-cana” depois... Desperto, meio grogue, meio tonto, a visão meio embaçada, uma dor na barriga, que parecia rígida. Na garganta um gosto de vômito e uma sensação de que havia engolido uma escova de cabelos. Olheiras, abatido, suado, sujo, molhado, despenteado, fui acordado por Pedro.

Talvez ele tenha evitado uma morte prematura, eu poderia morrer sufocado com um possível vomito, me restava agradecer.

– Cara, sei que minha imagem não inspira muita consideração ao que digo, mas, nem sei como te agradecer, eu estaria na merda se não fosse por você.

Ao que ele respondeu

- Relaxa! Foi um golpe de sorte. Meu estado também não era dos mais exemplares, mas eu sempre te vejo ir e vir por aqui. O vi lá naquelas e como vivo aqui também, nada me custava.

- Vive aqui?

- Isso. Moro com minha família lá em cima... Bom, pelo menos com o que restou dela.


Eu já havia visto aquele sujeito circulando pelo prédio antes, mas não esperava que ele também vivesse naquele maldito covil, havia um pouco de vida lá afinal.
Durante essa conversa ele anda pelo apartamento como quem busca alguma coisa incansavelmente. Parece que achou.

- Hei! São discos de Jazz! E um Piano!

Respondi, com a cabeça ainda doendo:

- É. Discos velhos e um piano sujo e desafinado.

- Velharia? Você tem é uns bons clássicos aqui, rapaz... Ah é! Seu nome. Qual é?

- Me chamo Ricardo. Você é Pedro, né? Já me falaram de você antes, mas achei que aquele velho maluco reclamava até de visitantes.

- Você também não gosta do Paulo? Aquele velho é retardado, só pode ser isso. Reclama de barulho em horário permitido, o filho da puta ficava me censurando quando eu estudava percussão lá no apê.

Daí para adiante, não foi preciso muito mais. Ele era um músico jovem, com revoltas parecidas as minhas, ao menos as do prédio. Em pouco tempo já estávamos em meio a uma conversa enorme sobre jazz, música e de como tudo é tão descartável.

Pedro era conhecedor da boa musica, gostava de Jazz, Rock, conhecia o maracatu e admirava ritmos como a salsa, um percussionista de verdade.

Enfim havia vida naquele prédio.

12 de abril de 2007

Capítulo 03

Sexta-feira treze, um dia estranho para se acordar de péssimo humor, sobretudo para alguém que não carregava crenças ou superstições, mas foi o que aconteceu naquele dia cinza. Decidi então que não daria para trás e que o levaria até o fim, o arrastaria feito correntes pesadas a serem arrastadas eternamente por um prisioneiro. Isso! Um prisioneiro, era assim que me sentia, um prisioneiro dentro do meu próprio corpo. Dentro de mim.

Comecei aquele dia pretendendo me libertar, decidi que castigaria meu corpo na tentativa de expulsar minha alma ou o que mais existisse lá, se era que algo existia mesmo. Meu primeiro impulso foi de ingerir toda e qualquer coisa que pudesse alterar meu estado físico e mental para o resto daquele dia e de cara encontrei largada na cozinha uma garrafa de café, frio, amargo e provavelmente “dormido” de três dias ou coisa assim. Tomei tudo, virei aquilo feito água. Meus sensos de equilíbrio e direção foram totalmente alterados por toda aquela cafeína.

O cair daquela tarde gris misturada ao meu desequilíbrio passageiro me fez querer mais daquela degradação. Tocando meus discos de jazz ao fundo, adicionei àquela onda bebidas quentes, transparentes, amareladas, claras, turvas, de todo jeito, o que interessava era o choque. Com o fim do crepúsculo, pus-me dentro de uma muda de roupas escolhida aleatoriamente e fui à rua meio sem destino, então buscando o desatino comecei a perambular pelos bares da orla.

Mais bebidas, bebidas de todos os cheiros nomes e jeitos, cachaça, vodka, uísque, absinto, fogo-paulista... Atirei-me àquele zoológico de sexo barato e baderna. Nomes e rostos se embaralham em minha memória, Paula, Raquel, Marcela, eram tantos os nomes, tantos corpos, tantos os cheiros e sabores que não consegui fixar nada, nada, ninguém, nada levei comigo! Nada!

Exceto por tontura, estômago embrulhando, queimação por dentro, dormência dos membros, dor de cabeça, falta de autocomando, tudo girava. Luzes, cores, formas e sons se embaralhavam, o equilíbrio se foi e...

Caí, desfaleci.

5 de abril de 2007

Capítulo 02

Conheci muita gente naquela época, gente de todos as cores, tamanhos, tipos e espécies. Conversei com os bacanas e com a ralé, com gente vazia e gente com muita história pra contar, essa geralmente bem chata. Ouvi histórias, vi a escória, a glória e a quase-derrota de um povo medíocre, mas que acaba sempre vencendo as coisas pelo cansaço. Eu era parte e me mantinha à parte daquilo tudo, aquela gente aparentemente normal, conservadores de um ideal de moral que pra mim já havia caído por terra, assim como minha família, aquela gente pseudomoderna que não suportava ouvir algo diferente de eco e que a única coisa que pôde fazer a meu favor foi ter tido a vida encerrada abruptamente naquele acidente, fazendo assim com que minha vida pudesse, de fato, se iniciar nesse “apê” velho e desprezado e com isso que chamam de pensão.

Meu tempo definitivamente não era regido pelo relógio, exercia a plenitude do meu direito de ir e vir. Era, em essência, o que muitos dos moradores daquele prédio imundo gostariam de ser, mas por despeito não eram e não admitia tal desejo. Seu Paulo era o comandante daquele chiqueiro, um projeto de síndico frustrado e falido. Quase todo dia eu ouvia a mesma ladainha reclamatória sobre minhas entradas e saídas do prédio todo o tempo, toda madrugada. E aquele prédio era cheio dessa gente. Havia Sônia, uma viúva amarga que vivia com sua irmã solteirona. Havia muitos “Paulos” e “Sônias” lá e por toda a cidade.

Aquela gente doida me inspirava às vezes, havia dias em que eu chegava e me sentava ao piano, dali não saia tão cedo, ficava dedilhando coisas pra lá e pra cá, descarregando raiva, nojo e o que mais viesse, até que me satisfizesse, mesmo que em nada resultasse. Era sempre eu, o piano, alguns papeis e uma garrafa, fosse cachaça, vodka, vinho ou café, importava só que fosse um combustível qualquer que me desse alguma força para pôr pra fora o que viesse. No final disso tudo restava eu, largado no chão vencido, enfim, esgotamento físico.

Lembro que nunca lembrava com clareza das coisas, o que eu considerava por memória eram os papéis rabiscados com anotações que eu encontrava pelo chão, em cima do piano e por onde mais houvesse espaço para haver algo. Onde não havia espaço para haver algo, me havia.